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Ensino médio

Bom, após fingir que minha barriga estava cheia eu ia para o banheiro do último andar do colégio para poder almoçar o que eu havia trazido de casa. Almoçar é uma palavra forte pois na maioria das vezes eu estava comendo Cream Cracker com manteiga e bebendo Guarathon misturado com água enquanto sentava no vaso sanitário numa cabine com a porta fechada. Após terminar de comer, eu jogava as embalagens diretamente na privada para que ninguém nunca suspeitasse que eu estava lanchando ali sozinho.

Entre o horário do almoço e o começo das aulas de tarde tínhamos bastante tempo livre, mas eu usualmente passava esse tempo livre sentado em algum banco pensando em como todos me odiavam. Minhas aulas de tarde não eram nada de especial, o único problema era que era a partir desse período do dia em que minhas mudas de roupa começavam a acabar. Eu precisava sempre levar inúmeras trocas de roupa já que múltiplas vezes ao longo do dia os meus colegas me mergulhavam em vasos, lixos e jogavam comida em mim.

Pensando bem, agora seria uma ótima hora para falar sobre meu vestuário habitual. Meu pai e minha mãe sempre tiveram uma tremenda afinidade por conseguir coisas de graça e por isso os dois começaram a trabalhar como gari na LIMPURB e se conheceram no emprego. A maior parte da nossa mobília e roupas é advinda de postes e caçambas que meu pai se depara diante um dia normal de trabalho. Por isso eu acabo ficando a mercê do que as outras pessoas nomeiam de "lixo", que para mim pode ser "pijama"

Normalmente eu ia para a escola vestindo uma camisa de retalhos de panos de prato, que sempre me divertia enquanto eu ficava olhando para todas as frases inacabadas sobre Deus e manhã e desenhos cortados de patos, borboletas e campos silvestres. Eu usava uma calça tamanho 58 do meu falecido tio obeso que não caberia em mim sob circunstâncias normais mas com um cinto ficava que nem uma luva. Sem contar que eu já vi alguns vídeos no TikTok sobre adolescentes que compram calças grandes em bazares e gravam vídeos usando, eles são que nem eu!. De tênis eu odiava sapatos fechados então possuía uma coleção inacabável de Crocs adquiridas da caçamba do Hospital da região, furava mais buracos com um fura coco e voilá!

Agora, minha mochila era uma linda mala de mão com rodinhas que era bem resistente e aguentava todos os impactos das pessoas que jogavam ela do quinto andar do colégio. Consegui essa mala porque minha família tem um macete para conseguir coisas de qualidade e que não fedem a chorume. Sempre que ouvimos falar de algum acidente em uma BR ou rodovia estadual, nós vamos correndo para tentar pegar emprestado as coisas dos ocupantes do carro falecidos ou incapacitados, funciona maravilhas, afinal de contas, só rico tem dinheiro para viajar, e ricos tem coisas boas.

Agora que percebi, completamente passei atropelando o fato de que eu tinha um tio obeso, talvez seja por sentir tanta culpa, mas acredito que se me explicar melhor aqui eu me sinta mais catártico. Quando eu tinha 8 anos meus pais me mandaram morar com meu tio porque ele estava numa condição em que simplesmente não conseguiria cuidar de si próprio. Sem contar que eu tinha mãos pequenas que eram perfeitas para ajudar a lavar debaixo dos pneus enormes que ele tinha.

Bom, acontece que ele estava numa dieta regrada mas eu me sentia tão mal vendo ele querer coisas tipo salgadinho ou bolo e não poder comê-las, até que me lembrei de algo que meus pais haviam me ensinado. Meus pais são defensores ferrenhos da Teoria Humoral, que basicamente propõe que existem 4 substâncias dentro do corpo humano que necessitam estar em equilíbrio constante e qualquer doença que afligisse o organismo seria a manifestação física de um desequilíbrio entre as substâncias. Eu sempre estou doente, e talvez seja por estar constantemente engolindo água da privada e vivendo numa casa com mobília e roupa vinda de lixões e caçambas, mas pode muito bem ser alguma desordem na minha Bílis Amarela.

De qualquer forma, vendo meu tio tão triste e me lembrando dos ensinamentos dos meus progenitores, tentei aplicar a Teoria Humoral na nutrição. Expliquei para meu tio que ele apenas estava sofrendo de Diabetes tipo 2 e Hipertensão Arterial Sistêmica porque ele não comia quantidades iguais de comidas salgadas e comidas doces. Comecei então a sempre dar para ele um número proporcional de açúcar e sal, como se fosse um multivitamínico ou suplemento diário. 12 colheres de chá de sal branco e 12 colheres de chá de açúcar cristal, uma para cada hora do dia.

Atualmente, eu entendo que isso talvez não seja bom para alguém ingerir diariamente, mas eu tinha apenas 8 anos naquela época, todo mundo já cometeu esse erro antes. Enfim, só pude passar 1 mês na casa do meu tio antes dele morrer, o que foi uma pena já que ele me deixava jogar Wii Sports todos os dias. Com breves pausas para alimentá-lo as colheres de sal e açúcar.

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